segunda-feira, abril 19, 2010

Heart Fixer, Leeang Chang - os invisíveis da nossa sociedade

Um dos posts mais comentados aqui no blog tratava sobre responsabilidade social. Foi também um dos que mais me emocionou ao escrever. Na época acho que conquistei um pouco do que desejava: compartilhar a minha visão sobre como vemos (ou não vemos) as pessoas ao nosso redor nas diferentes camadas da sociedade. Foi apenas um estímulo, pois sei que o processo de mudança envolve uma reeducação comportamental relativamente complexa. Fico feliz por voltar a tocar neste ponto de forma tão surpreendente, pelo menos pra mim.

Antes de chegar ao ponto central, gostaria de compartilhar mais algumas percepções. No início de 2010 fiz uma viagem para São Paulo de carro (já havia dito pra mim mesmo que não faria mais uma viagem para SP de carro, mas fui e me arrependi, pois é muito perigoso, mas deu tudo certo). No caminho tive um súbito pensamento quando passamos por um guichê do pedágio. O fato é que já era o segundo que havíamos passado e até aquele momento não demonstramos nenhum sentimento pelos que trabalhavam naqueles lugares, nada além de procurar moedas e pagar.

Ai veio o exercício de me colocar no lugar daquela pessoa na cabine. Quantos passam ali todos os dias dentro de seus carros? Quantos efetivamente olham nos olhos e enxergam a pessoa por trás do trabalho mecânico e cansativo? E pior, quantos não fazem uma piada ou insinuam algo deselegante? Qual a quantidade de pessoas que ali não descarregam uma reclamação contra o pedágio e as filas?

Bom, após esta rajada de reflexões, divide com o grupo itinerante o que me ocorreu e todos colocaram-se a pensar e contribuir com as própria idéias. A partir dali, decidimos, a viagem mudaria, porque passaríamos a dar mais atenção aquelas pessoas, mesmo que por segundos. Surpreendemo-nos com o fato de que a viagem ficou infinitamente melhor pra nós!

Todos os pedágios se transformaram em um local prazeroso de parar. Queríamos saber o nome da pessoa que ali estava. A reação do outro lado era de espanto às vezes, todavia logo mudavam quando viam que nossa intenção era sincera. Éramos recebidos com alegria.

Nessa mesma viagem conversamos um pouco sobre responsabilidade social. Foi quando uma amiga falou sobre o pesquisador e escritor formado pela Universidade de São Paulo Fernando Braga da Costa. Muitos já devem ter lido ou visto na TV alguma coisa relacionada a ele. Fernando optou por dar continuidade ao trabalho de faculdade que consistia em, por um dia, exercer ao lado de trabalhadores reais, uma profissão qualificada como subalterna e não qualificada. Aquilo que deveria ser uma experiência isolada em sua vida transformou-se em uma ação que ele executa até hoje, uma vez por semana, há dez anos: ser gari.

Somente os relatos de 8 anos dos profissionais subalternos e não qualificados que trabalharam ao lado dele renderam mais de 500 páginas. Antes que concluísse seu trabalho, Fernando foi contatado por pessoas de todo país que o perguntavam: onde compro o seu livro? Foi então que surgiu Homens Invisíveis: relatos de uma humilhação social, Ed. Globo.

Quando cheguei em casa depois da viagem para São Paulo fiz questão de procurar mais coisas sobre Fernando Braga da Costa e foi então que me deparei com um depoimento, que anexei abaixo em uma de suas entrevistas. Caso tenha interesse em saber mais sobre a experiência dele, fica a dica do livro, que ainda não tive oportunidade de ler.

De fato, tudo aquilo que me fez estar com eles e mesmo quando estou escrevendo a respeito disso, é um momento quando entro num estado que não é meu estado de vigília normal. A cada dois minutos escrevendo sobre essa experiência, me são exigidos outros 10 minutos chorando. Eu já tive, várias vezes, de parar de escrever ao lembrar dos fatos, pois é uma experiência emocionalmente carregada. Acho que eu comecei a perceber melhor os meus comprometimentos, assumi mais de perto as minhas dificuldades, reconheci melhor as muletas nas quais a gente se apóia e nos torna pessoas muito vazias. Quando me refiro que a experiência me curou de doenças burguesas, estou me referindo a diferença de visões. Exemplo: quando eu chegava lá de manhã cedo para trabalhar com eles e olhava aquele céu azul, bonito e elogiava a beleza desse céu, eu percebia que eles ficavam num silêncio absurdo. Eu não entendia aquilo. Até que um dia sentei num ponto de ônibus com um dos garis e ele virou-se para mim e disse: “Nossa, Fernando, dá uma olhada para o céu”. Aí eu olhei e tava aquele céu de brigadeiro, como dizem, azulzinho, às 7 da manhã o sol já ardia. E ele completou: “Nossa, o tempo tá ruim, hein?”. Aí é que eu me toquei, que para essas pessoas é tudo muito relativo. Aquele céu azul é maravilhoso para quem está trabalhando dentro do escritório com ar-condicionado. Mas para eles é sinônimo de esforço e desgaste redobrado. Então, me habituei a me questionar sobre a realidade dessas pessoas. E me dei conta de muitas outras convenções burguesas. Me referi muito mais a essa percepção, do que a coisas materiais. Eu não sou contra o conforto e a tecnologia, mas acho que a tecnologia deveria servir à todo mundo e não a apenas meia dúzia.

Há quase um ano, encontrei um rapaz que resolvi chamar de Garoto Artista, pois vergonhosamente não sabia o nome dele. Resumindo a história, o Garoto Artista é um menino com dificuldades cognitivas que, volta e meia, surge em um café bem freqüentado de Florianópolis para oferecer seu trabalho de desenhista.

Em uma dessas vezes ele nos abordou e fui extremamente normal (ou seja, ridículo) simplesmente dizendo: não obrigado, não tenho interesse hoje. Na mesa ao lado ouvi o Garoto dizer: “só preciso do meu dinheiro para pegar o ônibus de volta”. E mesmo assim, nem eu, nem meu amigo, nem as pessoas ao redor deram a devida atenção à aflição desse humano. Não era aquele tipo que está atrás de dinheiro para comprar drogas. Sinceramente não era nem um pouco invasivo, muito pelo contrário.

Voltei pra casa triste, pois depois que “pisei os pés no solo” percebi o tamanho da falta de sensibilidade. Ele queria pegar o ônibus! As mãos dele tremiam de medo, pois no meio daquela selva elegante o Garoto sabia que a tarefa seria quase impossível.

Naquele mesmo dia decidi que quando o encontrasse na próxima oportunidade eu faria tudo diferente, conversaria com ele, descobriria seu nome e solicitaria uma caricatura, caso fosse o gosto dele. Além disso, publiquei um post sobre o ocorrido e enviei um E-mail a todos do meu mailing para que, caso o encontrassem, prestassem algum tipo de ajuda. O apelo foi estendido não só a ele, mas aos invisíveis da nossa sociedade. Como disse, a repercussão foi muito positiva.

Mas tudo aquilo ficou no vazio. O Garoto Artista sumira do mapa e minha promessa parecia balela. Foi quando o encontrei neste fim de semana, no mesmo lugar. Quase pulei da cadeira. Percebi que meu sentimento era muito genuíno.

Melhor ainda, era o dia dele. Já na primeira parada em uma das mesas conseguiu o primeiro trabalho. Fez uma caricatura, conversou um pouco (isso me deixou muito feliz), mas no fim pagaram menos do que ele pediu. Só os óculos do individuo que lhe pagou a menos poderiam sustentar o Garoto por um mês. Mas tudo bem...

Ele dirigiu-se a minha mesa e não deixei nem ele falar: “por favor”, pedi, “faça uma caricatura minha e de minha namorada?”. Minha consorte que já havia lido a história do Garoto Artista ficou tão feliz quanto eu. Enquanto Leeang Chang desenhava-nos conversávamos atenciosamente, batíamos fotos. Oferecemos nossa comida e ele comentou: “estou guardando espaço para o meu almoço”. Era 15h.

Lianchang comentou que achava que naquele dia ele nem ia almoçar. Mas o mundo sorriu pra ele, ou de uma forma mais sincera, os humanos o viram, ficou visível.

Percebi naquele ocorrido que meu fim de semana estava sendo perfeito, ao lado de minha namorada Letícia. Mas mesmo assim, aquele momento ao lado de Leean Chang fez com que tudo fosse potencializado. Dormi feliz. Quando penso no que o Garoto Artista fez mudar em mim, eu me sinto mais vivo e lúcido. Não importa o quanto eu possa pagar pra ele, tenho certeza de que será pouco com relação ao que ele me ensinou. Isso é ética na prática.

É importante que as instituições sejam ainda mais ativas com relação a isso. Por mais que sejam, cada indivíduo pode melhorar muito nesse aspecto. Essa contribuição pessoal é muito mais carnal. É a mão estendida, o olhar sincero, o abraço quente naqueles que são eleitos como intocáveis pela sociedade.

Obrigado Leeang. Aliás, Leeang diz que gosta de trabalhar em eventos e me passou o seu E-mail: brokenheart7676@hotmail.com

Recomendo-o com carinho, embora o E-mail dele pudesse ser: heartfixer@...

Ricardo Melo


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